10 de setembro de 2008

É DE MORRER DE RIR

Titão e Aurora
— Lua, minha amiga, como vai você?
— Olá, Aurora! Já chegando?
— É, sei que é um pouco cedo ainda, mas permita que eu permaneça um pouco ao seu lado, meio escondida, enquanto não chega a minha hora de tomar o seu lugar no céu.
— Diga-me, então: como tem sido a sua vida?
— Bem, agora tem sido bem mais feliz do que nos últimos tempos.
— E seu belo marido, Titão, como está?
— Bem, não exatamente como antes...
— Como assim, Aurora?
— Ora, você não soube da desgraça que se abateu sobre nós?
— Não estou entendendo nada, Aurora. Comece do começo.
- Nossa felicidade era quase completa. Nos amávamos intensamente, mas eu tinha esse pesar secreto que me inquietava o tempo todo, a ponto de me tirar o sono. O fato de Titão não ser imortal, como eu. Assim, apesar de toda a nossa felicidade, eu sabia que um dia teria de perdê-lo. Certa vez, após uma noite de intenso prazer, decidi ir falar pessoalmente com Júpiter. Pedi a ele que concedesse a imortalidade para meu esposo:. "Gostaria, deus supremo, que você concedesse a Titão o dom da imortalidade!" — pedi.
Mas antes não o tivesse feito, pois sem saber o condenava a uma vida de horrendos sofrimentos.
— Por quê, Aurora?
— Bem, após muito insistir, consegui obter de Júpiter o que queria.
— E a partir daí você e Titão foram felizes para sempre.
— Melhor dizer infelizes para sempre. No começo fomos, de fato, imensamente felizes. Tão logo transmiti a novidade para ele, fomos tomados por uma alegria sem limites. "Imortal, Aurora! Imortal como você!", ele dizia, pondo as mãos à cabeça. Durante o dia inteiro comemoramos.
No começo, de fato, éramos ambos jovens e dispostos, com todos os meios para gozarmos de uma vida intensa e proveitosa. Assim fomos vivendo, sem nunca enjoarmos um do outro, pois nossos corpos e almas gozavam da mais perfeita juventude e vitalidade. Um dia, porém, percebi, enquanto jantávamos, um fio de cabelo branco luzir sobre sua têmpora direita. Como fosse apenas um fio isolado, levei isto à conta de uma banalidade. De repente, porém, longos fios de prata começaram a se espalhar no meio daquela selva de negros cabelos, tirando um pouco da sua antiga beleza. Assustada, pensei comigo mesma: "Meu Deus, será que Titão tornou-se mortal novamente?". Decidi, por isso, visitar Júpiter novamente para saber o que estava acontecendo.
"Não há nada de errado", disse ele, secamente. "Mas como, se vejo meu querido Titão envelhecer a cada dia que passa, diante de meus olhos?!", exclamei, sem compreender. "Sim, e daí?", disse, completando com esta frase que me desarmou: "Ora, você pediu para ele o dom da imortalidade e não o da eterna juventude!". Ai, amiga! A partir daí acabou o meu sossego. Como podia ser de modo diferente vendo dia a dia meu adorado Titão envelhecer e perder aos poucos a sua antiga virilidade? Cada vez mais sua cabeça foi se tornando grisalha; os músculos de seus outrora rijos braços pareciam agora murchar, deixando em seu lugar apenas pelancas flácidas que balançavam a cada movimento seu: seus dentes, antes brancos e sadios, começaram a se estragar, tornando-se amarelados e frouxos. Ah, Lua, foi horrível... E pior de tudo, talvez, era ver que eu não podia acompanhá-lo em sua decadência.
— Oh, não diga isto, Aurora! A saúde é sempre preferível, em qualquer circunstância!
— Mas se eu pudesse compartilhar com ele da sua decadência física, fazendo-me velha, também, quem sabe não teria sido mais justo? Ao menos ele estaria mais consolado, ao ver que ambos rumávamos para o mesmo destino!Com o passar dos anos todos os seus dentes começaram a ruir, e a sua mente principiou a dar evidentes sinais de senilidade. Titão tornava-se cada vez mais um velho ranzinza e resmungão — e, o que é pior, destinado a nunca morrer! Embora isto pareça cruel, devo admitir que já não via mais naquele velho nem a sombra do que fora o meu amado Titão. Era uma outra pessoa, completamente outra. Isto já era uma crueldade, comigo e com ele, eu pensava. Os mortais ao menos têm a bênção da morte quando a velhice se torna um fardo intolerável, enquanto ele estava destinado a suportar todo aquele horror para sempre. Tudo isto eu pensei mil vezes. Você sabe, fiz o que pude, mas aí chegou um tempo em que não consegui mais. Chega um ponto em que a gente também quer viver.

— E aí, o que você fez com ele?
— Bem, um dia ele perdeu os movimentos dos braços e das pernas — todos os movimentos, enfim... Não podendo mais suportar sua rabugice, tentei ainda insuflar-lhe um pouco de coragem. Mas como dar coragem a alguém que sofre de maneira contínua, se nem a esperança do descanso essa pessoa tem?
— Aurora, para ser franca, eu nunca vi um velho suspirar pela morte.
— Nem eu, na verdade. Bem, o fato é que não havia mais como suportar a presença daquele pobre homem, convertido num espantalho de si mesmo. Como era duro ver seus dedos finos como os de uma galinha deslizarem por sobre o branco colar remanescente de sua antiga cabeleira, arrancando tufos inteiros que lhe ficavam grudados às unhas...
— Sim, e o que resultou disso tudo, então? Ainda está com ele em casa?
— Não, esta é a última parte da história. Um dia, tomei a decisão de falar novamente com Júpiter e pedir que ele ao menos pusesse um fim ao sofrimento de meu marido, retirando-lhe a imortalidade, que para ele se tornara horror e maldição. Júpiter disse que não podia fazê-lo, pois a imortalidade era um dom divino. "Quem se tornou uma vez imortal não pode jamais deixar de
sê-lo. Isto seria um contra-senso e eu acabaria sendo causa de escárnio", disse Júpiter, que nesse dia estava com uma boa vontade surpreendente. "No entanto, permitirei que ele se transforme num outro ser, libertando-o desta forma decaída. Faça a escolha, e ela se realizará automaticamente", disse ele finalmente. Mais consolada, retornei para casa. Qualquer coisa era preferível a ser uma múmia privada de movimentos para todo o sempre, pensava, enquanto refazia o trajeto. Tão logo cheguei, entrei no quarto e flagrei-o escutando, com um sorriso que exprimia um resto de prazer, uma cigarra que, pousada no galho de um árvore, cantava com um alarido impressionante. "Antes fosse eu esta cigarra", disse Titão, deixando escorrer do canto de
sua boca um fio de saliva. "Que assim seja, meu querido!", disse ao seu ouvido. No mesmo instante suas formas ressequidas desapareceram e vi erguer-se de debaixo das cobertas uma bela cigarra prateada, que levantou-se, rodopiando pelo quarto, e após pousar sobre minha cabeça, como que a me agradecer, sumiu-se janela afora.
— Que lindo! Quero dizer, ao menos foi uma boa solução para aquela triste situação, não?
— Sim, agora ele está bem mais feliz, com toda a certeza. Aliás, todas as manhãs acordo com o seu canto, diante da minha janela. Às vezes recebo à noite, também, a sua visita.
— Ué, e cigarras cantam também à noite?
— E quem disse que as visitas são para cantar? Mas veja, já está na minha hora! Adeus, amiga!
— Adeus, querida!


Referências:
FRANCHINI, A. S.,SEGANFREDO,C.as 100 melhores histórias da mitologia:Deuses, heróis, monstros e guerras da tradição greco-romana.9° ed.Porto alegre,L & PM,2007.

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